8 de jun. de 2020

A Caixa

O amor, não o quebrei.


Já chegou a mim quebrado, feito encomenda online. Abri a caixa e ele estava lá, em pedaços como um quebra-cabeça. Tentei falar com a loja que me vendeu o artigo, explicar que chegou danificado mas a política de troca era mais restrita que uma quarentena. Tentei os correios mas se esquivaram e eximiram de qualquer responsabilidade, disseram que apenas transportam e não poderiam responder pelo conteúdo ainda que tanto eu como eles saibamos que tratam as encomendas como um gorila trataria porcelana chinesa.


Fiquei então com a caixa repleta de pequenos pedaços de um artigo que gastara muito tempo avaliando antes de adquirir, pesquisara muito, cada detalhe, modelo, tipo, característica, ano de fabricação, opcionais, prazo de validade, durabilidade e tudo mais. Nos dias de hoje, não podemos sair por aí comprando essas coisas de qualquer um ou de qualquer maneira, há muito embusteiro solto, muita gente agindo de má-fé, muito gato que se acha lebre e muita lebre que se acha gato e entre gatos e lebres, arrisca-se ficar com um lobo nas mãos, desses que assopram todas as casas até mesmo as de alvenaria, resta no final você de coração na mão, alma empenhada num débito eterno e olhos secos pois lágrimas são as primeiras que deixam de existir.


Conformado com aqueles cacos, larguei a caixa deixando-a num canto de modo a não me chamar a atenção mas também não totalmente fora de meu campo de visão talvez para que me servisse de alerta caso fosse tentar nova compra, que ficasse esperto e astuto ou, para quem sabe um dia me surpreender com o amor pulando de dentro dela intacto, remendado de si mesmo e precisava apenas de tempo o que, verdade, era um ledo engano, se há amor que faz isso nunca vi, todos que que já ouvi falar quebram para nunca mais, que dizer do meu que já chegara estilhaçado.


Tentei comprar outro, a busca foi novamente exaustiva e havia ocorrido uma alta nos preços, estava mais caro que o normal quem sabe pela alta do dólar, a crise econômica ou todos esses fatores que desandam a vida nossa de cada dia. O amor não deveria ser afetado por essas coisas mas, nos dias de hoje, parece que virou uma commodity como qualquer outra, sujeita ao farfalhar das asas da conjuntura mundial, saudade do tempo que não vivi quando o amor era refúgio e não arrego se é que houve tal tempo, coisa de conto de fadas, acho que as mães liam para nós em nossas camas aí crescemos e vemos que o conto era de foda e não de fadas.


Cansado, desisti de comprar um amor novo, os preços estavam pela hora da morte e eu não andava lá com as finanças muito saudáveis, talvez pela falta do amor se bem que há gente saudável financeiramente que depois de adquirir o amor foi parar na sarjeta, acho uma questão administrativa, o amor precisa ser administrado, gerido ou então vai acabar com sua vida. Pena que somos péssimos administradores de tudo, sem exceção, que o diz ser mente deslavadamente e se aparenta essa saúde por fora, na intimidade está mesmo com a ordem de despejo da vida pregada na porta.


A caixa ainda estava lá em seu canto, quieta com seus cacos confabulando talvez contra mim ou, mais certo, pouco se importando comigo. Resolvi dar uma boa olhada naqueles pedaços de amor, peguei a caixa, abri e comecei a mexer nos pedaços olhando atentamente cada um deles, vendo como poderiam encaixar-se, sentia uma desalento e desânimo, porque dentre tantos amores o meu tinha vindo quebrado? Mas, acho que todos os amores vêm assim mesmo, não? Daí vamos juntando e moldando até que ele fique do jeito que queremos, eu que me enganara achando que viria pronto, montado, para ser usado de imediato. 


Vasculhei a caixa e no fundo encontrei um folheto com algumas instruções, duas linhas na verdade impressas de forma simples e que apenas diziam isso mesmo, que fosse montado como desejado e, caso não ficasse de meu agrado, bastava quebrar e montar de novo, animei com isso, como não havia visto isso no fundo da caixa ou quando o comprara?


Mas havia uma letra miúda, sempre há, aproximei o papel dos olhos e com esforço, li que apenas se poderia quebrar e remontar o amor uma quantidade muito pequena de vezes, depois disso melhor mesmo era desfazer-se dele e adquirir um novo e meio que desanimei ali com os cacos nas mãos, olhando para eles como a segurar algo de pouca valia.


Respirei fundo, me investi de coragem e determinação, olhei para o papel, o amassei e joguei de lado. Comecei a montar os caquinhos aos poucos, tinha tempo e paciência, iria montar meu amor e tomaria todo o cuidado do mundo para não o quebrar.


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