1 de fev. de 2021

eduardo

eduardo aconteceu  num dia quente de um mês quente de um ano quente numa cidade quente de um estado quente parte de um país quente, há quem culpe o calor pelo fato de eduardo ter saído como saiu e eduardo aconteceu porque pessoas como eduardo não nascem, acontecem e não pelo simples fato de acontecer que isso é comum mas pelo acontecimento em si com toda a pompa e seriedade que um acontecimento implicam.

eduardo acontecido buscou sôfrego o peito materno e sugou como se por ele fosse extrair a alma da genitora que, feliz, chamou eduardo de forte, saudável e menino nascido homem porque é preciso dizer essas coisas logo cedo para incorporar o papel sem temer que haja espaço que qualquer desvio que, anos mais tarde, recaiam sobre a mãe que invariavelmente são culpadas pelos desvios dos filhos seja por ter dado amor demais, de menos, nenhum ou simplesmente por terem sido mães e mulheres, como se fosse algum tido de dissociação.

mas eduardo não aconteceu para ser eduardo e desde cedo a mãe, zelosa, já mirava o menino que ensaiava passos no caminho que lhe era estranho mas, por ser mãe e por ser eduardo seu primogênito e único, fazia vista grossa e ralhava com todos inclusive o pai quando lhe sugeriam que estava a criar o menino errado e ninguém mais ousava falar nada porque meter-se entre mãe e sua cria é pedir para ter morte certa ainda mais quando a mãe conhece bem a cria que pariu e sabe que ela vai sofrer quando não mais puder contar com as asas maternas então, ela faz de tudo enquanto tiver asas grandes o suficiente para acolher a cria.

e assim, eduardo passou a infância sendo tudo menos eduardo e a mãe lhe protegia como podia e não podia e eduardo fazia o que podia e não podia e a vida lhe batia como podia e não podia e a molecada lhe fazia o que podia e não podia e a vizinhança falava o que podia e não podia e o pai de eduardo bebia o que podia e não podia e batia no filho como podia e não podia e a mãe colocou o macho para fora como podia e não podia e eduardo chorava como podia e não podia e a escola fazia o que podia e não podia mas eduardo não se encaixava como podia e não podia e a mão chorava como podia e não podia mas fazia de tudo para que eduardo tivesse o que pudesse e não poderia e eduardo amava a mão como podia e não podia e eduardo foi crescendo como podia e não podia e virou moço como podia e não podia e a cidade fazia dele o que podia e não podia até um dia, eduardo, cansado de poder e não poder, avisou a mãe que não mais podia ser assim e que iria podendo ou não buscar sua vida onde fosse possível poder e não poder mas que ali é que não podia mais ficar porque ali poder e não poder dava o mesmo e de mesmo ele já não fazia ou podia mais.

a mãe lhe deu a benção, benzeu a pequena mala com as poucas roupas que tinha e o pouco dinheiro que guardava e que ele não queria levar mas que ela fez levar porque aquilo era para um emergência e ela, já velha, tinha como única emergência a morte que é uma emergência dos outros e não nossa porque já morremos e quem fica sim tem emergência de velar e enterrar o corpo, eduardo ia precisar mais e ele, a contragosto, aceitou e foi embora com a mala pequena, o dinheiro emergência, o medo da morte rondando a mãe, um benção em cada têmpora e uma ausência de culpa em relação a cidade quente onde nascera.

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