15 de mar. de 2010

alzira



Alzira era uma mulher medíocre. Não dessas rampeiras ou mesmo desfavorecidas pela sorte ou destino mas simplesmente medíocre. Daquelas que passam pela vida sem deixar marca que não sejam o CPF e RG.
 
Alzira trabalhava muito, em uma empresa de remessas urgentes, operava a maquina que gerava etiquetas de endereços as quais iam ter com suas caixas, envelopes e afins para que estes atingissem seu destino final.
 
Alzira pensava que se mesmo esses possuíam suas etiquetas, ela também teria algo que a completasse, que lhe dissesse qual seu destino e a levasse lá. Alzira entrava com as informações na máquina desejando que uma das etiquetas fosse a de seu endereço e que lhe enviasse um amor duradouro, que etiquetasse seu coração sem destino.
 
Alzira tinha uma hora de almoço. Geralmente com as amigas, conversavam entre colheres de arroz, feijão e misturas. Discutiam as novelas, o trabalho, amenidades e homens. Alzira não sabia o que falar sobre homens pois para ela eram como arroz e feijão, pareciam ótimos juntos mas eram sempre vendidos em embalagens separadas.
 
Alzira tinha um alento na empresa, alguém que já a fizera errar a digitação na máquina. Alzira sabia que muitas ali queriam que as etiquetas lhes enviassem ele mas ela, de alguma forma, sabia que ele só teria etiquetas para ela. Os olhares, os modos com que a tratava, como lhe dava bom dia, boa tarde e boa noite.
 
Alzira, em casa, se olhava no espelho do guará-roupa. Não era ruim de corpo, algumas carnes a mais aqui e ali mas, no geral, era bem feita sim ainda que já fosse pouco mais que uma balzaquiana. Alzira em segredo de suas paredes, sonhava com ele a chegar em sua porta, entregue pelas etiquetas mágicas que lhe sabiam o desejo, restavam apenas a mão lambuzada e o gosto falso na boca.
 
Alzira um dia foi pega de surpresa. Ele, ao fim do dia, chega perto de seu posto e lhe pergunta se não ela quer ir tomar um chope. Ela sem jeito acena que sim, só precisava se trocar ali mesmo, depois do expediente. Ele diz que a esperaria na saída ela errava várias etiquetas.
 
Alzira foi tomar uns chopes. Bebeu à larga, com gosto e a conversa ia solta quando ela flagrou as mãos dele em suas coxas. Estariam lá há mais tempo e ela só notara agora? Era um abuso mas os protestos nunca saíram de sua garganta já obstruída por gemidos contidos.
 
Alzira gozou muito naquela noite. Chegou até a pensar que ia morrer. Quando os dois, vencidos pelo cansaço, jogaram-se um de cada lado da cama, ela pensou que finalmente a máquina lhe ouvira as preces e que não precisaria mais vagar em desatino. Ele descansava a seu lado, ela quis tocá-lo mas ele levantou-se e disse que ali não poderia dormir pois precisava voltar para a casa.
 
Alzira temeu que ele fosse o destino de outra mas ele disse que apenas queria ir para a casa e que não ficaria bem chegarem juntos no trabalho no dia seguinte. Ela entendeu ou fez que entendeu e deixou-o ir. Dormiu sobre seu cheiro, acordou molhada.
 
Alzira foi trabalhar, normalmente mas de forma especial. A pele brilhava, os olhos em luz, os cabelos soltos flutuavam com graça ímpar. As amigas notaram, interrogavam Alzira mas ela se negava a dizer uma sílaba sobre a noite que passara. No entanto, o olhar é traiçoeiro, lhe entregou a empreitada quando ele passou a sua frente sem lhe dar atenção ou sequer bons dias.
 
Alzira foi advertida pelas amigas de que ele boa coisa não era, que ela não se iludisse pois muitas outras haviam tomado daquela água e perdido a razão. Mas ela sabia como calar essas maldades e soterrar os alarmes que sua mente lhe dava sobre o palpitar de seu coração.
 
Alzira viu o tempo passar e o que era uma noite inesquecível tornar-se lembrança pesarosa. Ele dela se esquivava, mal lhe cumprimentava e limitava seus diálogos ao estritamente profissional. Ela, temerosa de fazer cenas, aceitava tudo com resignação ainda que aos poucos, por dentro, só restassem escombros.
 
Alzira agüentou firme, as amigas a lhe apoiar e tentar levantar os ânimos. Mas ela, ainda que por fora aparentasse superação sofrida, por dentro perdera o viço e arrastava os dias de forma sem sal e robótica.
 
Alzira finalmente resolveu. Foi trabalhar um dia, bem cedo, antes de todos, ligou sua máquina de etiquetas e passou pouco mais de meia hora digitando. Era rápida, por isso conseguira o emprego. Quando os colegas chegaram, diz-se indisposta e pede a uma colega que a substitua na máquina e que já havia adiantado o trabalho.
 
Dois dias depois, acharam Alzira em casa, esticada no chão da cozinha, uma espuma verde ressecada a lhe pender do lado esquerdo da boca. Houve choro, comoção, as amigas lhe adoravam.
 
Três dias depois, todos, inclusive ele, receberam encomendas expressas, envelopes etiquetados contendo cada um deles um pequeno pedaço de coração de papel. O maior e mais vermelho foi para ele.

4 comentários:

  1. Ah, Zira...
    Excelente texto!

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  2. P.S.: Suco de rola eu também quero!

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  3. Ai, como eu gosto dos seus textos. Me lembrou a "A Hora da Estrela".
    very sad...

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  4. Excelente, "marido"... hahaha!
    Vou sentir saudades da Alzira...
    Hugz, querido! Adorei teu comment!!!

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one is the loniest number...

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