12 de jan. de 2011

fofão


Quando comecei a sair na noite guei de São Paulo com meu namorado à época (falei sobre ele aqui), a presença da 'Fofão' já era frequente. Lembro muito bem da primeira vez que a vi na noite e, como não se podia esperar diferente, ficamos eu e ele olhando para ela sem olhar.

Novos que éramos tanto em idade como no mundo guei, ver alguém daquele jeito era ao mesmo tempo intrigante e aterrorizante pois quem poderia saber se não acabaríamos daquele jeito? Mal havíamos entendido nossa homossexualidade, que dirá entender de modificações físicas envolvendo sexualidade e gênero.

Enfim, víamos ele com frequência na noite guei paulistana e mais frequentemente ainda nos carnavais para onde meu amor então me arrastava (sob protestos) pois ele gostava da festa e eu até hoje acho um porre total. Uma lembrança vívida dele (ou dela?) que tenho é de um baile de carnaval na já mais do que extinta Gents (Braccies vai lembrar dessa) que ficava na região do Ibirapuera. Fofão estava com uma micro tanga vermelha brilhosa, o corpo alvo feito neve e magro como modelo solto no salão e apenas uma pluma presa a um cordão de strass subindo a partir de sua testa.

Essa é, como disse, a lembrança mais clara que tenho dela e que vou manter. Não a da pessoa calçando sacos plásticos de mercado e com outro destes a lhe cobrir da chuva a cabeça que vi por esses dias sentada na calçada ao lado do prédio onde moramos. Ela (ele?) comia algo que parecia um mamitex e só reconheci que era a Fofão pelos sinais que lhe são característicos.

Ao sair de casa, lá estava ela/ele e ainda dei uma ou duas olhadas para trás fins de certificar-me de que era ela mesmo, não houve dúvidas. Podemos considerar a Fofão como uma 'lenda urbana' do centro da cidade: todos sabem que existe mas poucos já viram. Na verdade, já a havia visto em outras ocasiões perambulando pelo centro ou pela região da Paulista, às vezes vestido com roupas que mais pareciam trapos, às vezes vestida como se fosse um de nós indo à feira.

Já a tinha visto vendendo balas ou afins em semáforos e acho que até mesmo pedindo uma ajuda aos carros que paravam mas, nunca a tinha visto numa situação tão degradante como desta última vez. Acho que mais transtornado fico pelo fato de saber-lhe uma pessoa que, mesmo indiretamente, passou pela minha vida em uma fase que foi preciosa e se eu pude tirar proveito de tudo que me aconteceu de lá pra cá e hoje estar onde estou, o que se passou com ele que desandou a esse ponto?

De certa forma, independente da orientação sexual, a cidade borbulha de pessoas nas mesmas condições mas para o homossexual o acúmulo parece ser maior não desmerecendo a dor e desgraças alheias. Desejava sentar ali e perguntar-lhe o que houve, que caminhos ele fez para acabar ali onde estava e, talvez numa tentativa egoísta de limpar erros passados e diminuir minha lista de pecados, estender-lhe a mão amiga e tentar jogar alguma luz naquilo que se tornou sua vida.

Mas o receio e a avareza pessoal e social me preveniram disso, se entre nós mesmos as travestis já são jogadas quase para fora do 'gueto', que dirá uma que além de travesti é moradora de rua? No fundo, o que eu poderia fazer por ela? Conversar? Talvez isso já bastasse e talvez, ao fim da conversa, eu descobrisse a noção de que ela e não eu é feliz, como saber?

Imagino que o desejo seja mesmo o de saber quem ela é, o que fez na vida, por onde andou, qual sua estória? Já ouvi boatos aqui e ali e  que pude apurar como quase verídico é que ele é do interior e veio para a capital para virar travesti mesmo. Dizem ser exímio maquiador e que chegou a trabalhar para estrelas do quilate de Hebe e afins mas depois vieram as drogas e o silicone que deu errado e tudo se perdeu deixando-o um pouco desequilibrado. Dizem também que seu nome é Ricardo.

Me dói fundo saber que, assim como ela, a rua é pródiga em personagens assim e só me dói mais saber que meu pai, quando se for, vai levar um outro tanto de estórias de vida com ele e eu acho que nem ouvi metade do que ele tem para contar e, confesso, faço esforço mediano para extrair dele esses dados posto que nós consideramos o que é velho como digno de pena e de estar enconstado em algum lugar sem atrapalhar os outros, descarte total.

Vendo a Fofão na rua, penso se ainda não é tempo de fazer alguns acertos antes que deixem cair o pano.

12 comentários:

  1. nossa, q estória terrivel...

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  2. Wow, que estória noturna, hehe

    Acho incríveis essas histórias de pessoas que alcançaram o topo e caíram, q tavam na merda e melhoraram e por aí vai. Querendo ou não são muitas pessoas com histórias como a dela que dão todo o charme decadente do centro velho.

    Abs

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  3. então, isso mesmo.A vida é uma surpresa, e nunca, por mais que nos esforcemos sabemos como vai ficar.
    Pode-se num dia ter tudo, e depois nada.Depende muito de aonde você ancora seus valores.
    bjo

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  4. Pode soar esquisito, mas será que seu pai não se animaria a ter um blog?

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  5. A primeira vez que a vi, me assustei e não conseguia olhar para a cara "dela" sem dar bandeira. Desde então já ouvi várias lendas urbanas a respeito da deformação do seu rosto. O fato que coincidentemente na segunda feira saindo do trabalho e a vi sentada próximo do metro República e tive o mesmo insight que você.

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  6. Quando a gente quer, a gente consegue. Só que os panos não se seguram o quanto a gente precisa. se correr, quem sabe ainda dá tempo?

    Um beijo Melo!

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  7. Por todos os cantos estas histórias se repetem ... seja onde for os personagens "lendas" se proliferam com suas angústias e perdidos no meio da vida sórdida sem q qualquer um de nós possa [ou queira] fazer algo ...

    Em minhas andanças por Sampa não conheci Fofão mas muito ouvi falar ...

    A Gents tb não conheci ... que pena ...

    Não ter tido oportunidade de conhecer tudo isto tb me angustia ... mesmo sem poder fazer muito, isto nos ensina muita coisa ...

    bjux

    ;-)

    ps: fiquei meio angustiado com este seu post ... mas tá valendo ...

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  8. - eu já bati cartão na Gent's (#abafa)

    - Fofão já foi figura fácil na Paulista. Eu mesmo ri algumas vezes, senti pena em outras.
    Hoje olho pra ele e penso mais nas minhas atitudes do que nas dele..e onde as minhas me levarão no futuro.

    bjs

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  9. Já a (o) encontrei nas ruas, realmente é de partir o coração.

    Séculos atrás, quando descobri que era gay, meu maior medo era ir parar na rua. Meus pais jamais fariam isso, é claro, mas vc sempre imagina uma vida de solidão.

    Nunca usei drogas, não por moralismo, mas porque não é a minha praia mesmo, mas já vi muita gente próxima que se destruiu por conta delas.

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  10. é triste mas é uma pena que existam tantos como ele/ela por ai...

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  11. Coitada... Muito triste essa história... =/
    Poderiam fazer alguma ong ou fundo privado para ajudar essas pessoas, pelo menos oferecer um pouco de dignidade...

    Um abraço Melo... Até o próximo

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  12. Triste a história, triste mesmo. ._.

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