2 de jun. de 2020

Liga/Desliga

Quando apaguei a luz, senti algo morno escorrer pela nuca como se uma gota de chocolate quente escorresse da base do crânio espinha abaixo, lambendo os poros feito dedos melados.

Sacudi a cabeça levemente como para desfazer-me daquela sensação incômoda e fui deitar. A cama estava fria mas não gelada, acomodei-me entre os lençóis e aos poucos cheguei a um estado onde as temperaturas estavam iguais e não havia mais como dar ou receber calor.

Mudo, encarei o teto buscando alguma forma de ter respostas para perguntas que eu não sabia como fazer. Jurava ter ficado assim por horas mas quando olhei para o relógio na mesa de cabeceira, míseros dez minutos tinham corrido. Soltei um impropério qualquer e sentei-me na cama, os pés roçando o piso frio no escuro, o relógio mudando seus números devagar como se esperando que eu dormisse para poder fazer o mesmo.

A sensação de algo quente deslizando nuca abaixo voltou e, instintivamente, levei a mão direita até o local, talvez uma picada de algum inseto ou alguma alergia. Foi quando senti aquilo. Não estava lá antes, ao menos não me recordo de tê-lo sentido enquanto esfregava a cabeça durante o banho e era algo muito fora do comum para que não o tivesse notado.

Talvez houvesse batido a cabeça em algum lugar acidentalmente e não me recordasse e agora havia aquilo ali para me lembrar que sim me machucara mas, refazendo minha rotina mentalmente, não lembrei de nada e qualquer coisa que houvesse causado aquilo eu, de certo, não esqueceria.

Passei a mão novamente mas devagar, sentindo a forma, seu tamanho, textura e o tato não tinha como mentir mesmo que eu julgasse a impossibilidade daquilo. Não era um galo, nem uma espinha, nem mesmo um furúnculo; não era uma fratura, hérnia, concussão ou algo do tipo, aquilo era um interruptor, desses comuns onde ligamos ou desligamos um aparelho ou luz, um liga/desliga ordinario.

O interruptor parecia sair da base de meu crânio sendo que a chave em si apontava para cima agora, se essa era a posição liga ou desliga não tinha como saber e, receoso, removi a mão pousando-a sobre meu joelho.

Devo ter ficado assim alguns minutos, olhando para o relógio que seguia trocando seus números preguiçosamente e sem ter certeza do que estava acontecendo ou do que deveria fazer. Pensei em levantar, acender a luz, ir ao banheiro, lavar o rosto e quem sabe acordar pois só podia mesmo estar dormindo e tendo algum pesadelo absurdo mas, se fosse isso mesmo, eu tinha uma imaginação pouco fértil pois fora o interruptor na cabeça todo o resto exalava um ar de realidade incongruente com o mundo onírico, não que um interruptor na cabeça não o fosse.

Tomei coragem, levantei, acendi a luz do quarto e fui ao banheiro mas lá, não acendi a luz, a luz que vinha do quarto era suficiente para que eu abrisse a torneira e, com as mãos em concha, jogasse água no rosto. Fechei a torneira, o resto de água escorria vagarosamente pelo ralo, o redemoinho da água descendo rodava calmo, pequenos respingos de meu rosto molhado caíam na pia e faziam um barulho surdo.

Olhei para o espelho acima da pia e meu reflexo parecia meio borrado, não havia luz suficiente mas temia que ao acendê-la forçosamente teria de encarar o fato de que não estava sonhando. Ouvi um carro frear bruscamente na rua e alguém soltando algum tipo de maldição, se era mesmo um sonho era bem realista, eu deveria ter uma mente ímpar para o sonhar.

Tomado de coragem, acendi a luz do banheiro e fechei um pouco os olhos ante a claridade súbita. Não queria abri-los, fiz mais um esforço para despertar caso ainda fosse algum tipo de ilusão e abri os olhos aos poucos. 

Ali estava eu, rosto molhado, encarando meu reflexo também molhado, na verdade ele não estava, quem estava era eu, ele deveria estar seco afinal quem molhara o rosto fora eu e não ele, daquele lado ele deveria estar com sono e irritado por eu tê-lo feito acordar apenas para me olhar em horário tão estapafúrdio.

Abri o armário embutido no espelho e de lá saquei um espelho menor, de mão. Fechei o armário e voltei a me olhar. Com certo malabarismo, consegui alinhar o espelho de mão, minha nuca e o espelho no armário. Consegui ver o interruptor, estava mesmo lá, era branco, quase gelo e estava perfeitamente embutido em mim, não havia reentrâncias, não havia aquela capa de plástico que geralmente protege os interruptores, era como se ele houvesse simplesmente brotado do fundo de mim.

Comecei a pensar se não havia sido abduzido e passado por alguma experiência mas, o máximo de abdução que já me ocorrera fora quando eu resolvi largar tudo e passar um fim de semana numa praia distante o que não qualificava como abdução, eu sei, mas era a experiência mais próxima disso que me recordava. 

Talvez eu tivesse sido cobaia em algum experimento secreto mas novamente, o mais próximo disso que já vivera fora quando tentei participar de um grupo de pesquisas sobre novos refrigerantes e fui dispensado logo de cara porque não me encaixava no perfil que desejavam.

Abandonei as teorias de conspiração e resolvi que o melhor seria procurar ajuda profissional agora não sabia se seria um médico ou um eletricista. Na dúvida, optei pelo primeiro e se ele não desse jeito partiria para o segundo. Como a noite já ia larga, resolvi esperar até amanhecer, não queria sair correndo para um pronto-socorro onde seria alvo de escrutínio, preferia consultar um profissional que já conhecia e pensei se não deveria ser um psiquiatra, quem sabe não estava perdendo a razão e alucinando?

Resolvi me acalmar, guardei o espelho de mão dentro do armário, apaguei a luz, deixei a torneira pingando e voltei ao quarto. Fiquei parado no meio dele, olhei ao redor para me certificar de que estava mesmo no meu quarto, a cama era a mesma como sempre fora, a TV era mesma e seguia sem funcionar como sempre estivera, a cômoda ao lado esquerdo da cama era a mesma, velha, carcomida e cujas gavetas prendiam em minhas peças de roupa mal acomodadas nelas.

A porta que dava para a sala/cozinha era a mesma com a mesma maçaneta que emperrava quando fazia muito frio e a janela que dava para a rua era também a mesma, a mesma trinca na parte superior do vidro parecendo uma teia que alguma aranha desistira de tecer e a veneziana onde faltavam algumas palhetas era também a mesma.

Tudo era igual salvo o interruptor na base da minha cabeça. Sentei-me na beirada da cama novamente, olhei para o relógio e acho que ele pegara no sono pois os números não mais mudavam. Teria de aguardar ainda algum tempo até raiar o dia poder ir ao médico, ficar com aquele botão ali certamente não me deixaria dormir.

Comecei então a pensar no que aconteceria se eu mexesse nele, se o ligasse (ou desligasse, não tinha como saber se na posição em que se encontrava era um ou outro). Pensando bem e com mais calma, seria uma vantagem possuir um botão de liga/desliga, pensem bem, na hora de dormir, adeus insônia basta desligar se bem que isso implica um problema, como fazer para despertar depois de desligado? Boa pergunta mas, como não sou eletricista ou engenheiro, passei para outras aplicações práticas (que implicavam o mesmo dilema, depois de desligado, como religar?).

Após algum tempo que não sei precisar pois o relógio ainda dormia, só acordaria de manhã é certo, resolvi que não custaria testar afinal, o botão estava ali e se ali estava era por uma razão mesmo não tendo sido pedido por mim ou oferecido como algum tipo de graça ou recompensa, pouco provável que uma ou outra fosse chegar na forma de um interruptor se bem que o milagre não escolhe forma, nós é não entendemos como ele vem.

Levei a mão até o botão e o senti novamente, estava lá, parado e quieto, hesitei e tirei a mão, e se ao mexer nele eu simplesmente deixasse de existir? Mas se assim fosse, porque eu teria aquele interruptor na cabeça? Minhas têmporas latejavam, era mais filosofia do que podia suportar, uma decisão se fazia necessária e, determinado, levei a mão de novo ao botão e buscando lá no fundo alguma prece ou algo que o valha, puxei o interruptor para baixo.

Quando apaguei a luz, senti algo morno escorrer pela nuca como se uma gota de chocolate quente escorresse da base do crânio espinha abaixo, lambendo os poros feito dedos melados...


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