4 de jun. de 2020

Memórias de balcão

olha ali

apontou com os olhos para o senhor do outro lado do balcão.

que?

ali, dá uma olhada.

e apontou de novo para o senhor do outro lado do balcão. o outro olhou, o senhor, bem senhor, bebericava um café com leite cerimonialmente. vestia os trajes típicos de um senhor, esses que não se tornam senhores mas se apossam de tornar-se um senhor como alguém que assalta uma geladeira no meio da noite.

quem é?

perguntou enquanto partia em dois seu pão na chapa.

afff, como assim quem é? é ele, porra.

e dessa vez usou o dedo para apontar como se esquadrinhasse o senhor de forma cartográfica.

meu, ele quem?

enfiou um pedaço grande de pão na boca formando em um lado da boca uma bola como se fosse algum tipo de tumor.

ele! lembra? aquele lá, esqueci o nome, faz tempo já mas ele foi importante.

e fez cara de quem se esforça para recordar algo que fica fugindo dentro da mente.

não lembro nem o que comi ontem, vou lembrar de alguém que faz tempo?

e engoliu a massa de pão que já não era mais um tumor.

porra! ele foi do governo, naquela época, nossa, merda de nome que não me vem, ele fez merda, morreu muita gente, lembra?

e olhava fixo o senhor que, sem dar fé, ainda bebia lentamente seu café com leite dando pequenas assopradas entre um gole e outro.

ah! aquele? porra, como era o nome dele mesmo? esqueci também, ele foi daquela vez, da doença? quando morreu gente pra caralho, mas isso foi o que? uns vinte anos ou mais?

e acenou para o balconista pedindo mais um pingado.

deve ser, mais ou menos isso, eu lembro que foi merda das grandes, a doença e tudo mais e aí parece que ele tentou dar um golpe mas deu ruim, se fudeu.

e pediu também um pingado. o senhor se apercebeu de ser o alvo da conversa dos dois ali do outro lado do balcão mas, seguiu tomando seu café com leite olhando fixamente para o copo que segurava com as duas mãos.

nossa, eu sei, eu sei! teve os filhos dele né? lembrei agora, foi feia a coisa, morreram os três, ou eram quatro? saiu no jornal e tal, mas um deles se matou, não foi?

e colocou mais um pedaço, menor, de pão na boca.

foi, um deles se matou, deu no jornal sim, disse que não ia preso, os outros foram e depois sumiram do mapa, acho que foram embora e ele ficou sozinho, lembro que foi preso mas depois soltaram e ele sumiu, nunca mais viram.

e xingou quando pegou o copo com líquido quente e queimou as pontas dos dedos.

isso, foi isso. ele pegou uma cana mas depois saiu e nunca mais. mas tem certeza de que é ele?

e apontou para o senhor que estava do outro lado do balcão, bebendo café com leite de memórias.

tenho, porra! só não consigo lembrar do nome, meu deus, como era?

e olhou fixo para o copo a sua frente exalando fios de vapor quente como se daquele oráculo improvisado fosse surgir o nome do desconhecido.

o senhor do outro lado do balcão sabia. tinha percebido. há tempos sua vida era tomar café em padarias diferentes de cidades diferentes de bairros diferentes de vizinhanças diferentes. hoje não era também diferente. os olhos em cima de si. as lembranças de alguém que ele fora, era, tinha sido, ainda era, seria, poderia ser. olhou para o café e desistiu. melhor começar a tratar de ir atrás de outra padaria, ou cidade, ou bairro, ou vizinhança, ou país.

não. país não. esse ele não teria diferente. seus filhos o abandonaram. seus amigos o abandonaram. todos o abandonaram mas ele, não. ele sairia dali num caixão, quase fora mas não deixaram e ele ainda estava ali.

levantou-se. claudicou até o caixa embalado em memórias não causadas por ele mas pelos dois do outro lado do balcão que ainda tinham olhos em cima dele. chegou no caixa e estendeu o papelzinho onde estava o total do café com leite que nem acabar de beber.

só isso, seu jair?

perguntou o caixa entre soma, divisão, subtração e multiplicação, contas. a vide é um sem fim de contas que nunca se acertam no final.

só isso, nelson, obrigado.

e manteve os olhos fixo no caixa enquanto quatro olhos ainda se fixavam nele inquisidores.

três e cinquenta.

e olhou para o senhor vestido como senhor, desses que se vestem como senhor porque a vida inteira sempre foram senhores.

eita, nelson, aumentou?

e o senhor estendeu uma nota de cinco.

a crise, seu jair! a crise! mas vai melhorar, né? esse governo aí vai dar jeito nas coisas, não é mais como antigamente.

e devolveu o troco às mãos claudicantes não por senilidade mas por emoção de lembrar de governo. de antes.

vamos ver, nelson...vamos ver, né?

aprumou-se. estufou o peito de senhor, desses de senhor que estufa o peito quando sente um orgulho de ter sido algo ou alguém que foi, era, seria, quem sabe.

saiu da padaria e nunca mais foi visto por ali.

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